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TRAJETÓRIA DE LUTAS, SACRIFÍCIOS E VITÓRIAS

Cresci ouvindo as histórias de vida do meu pai e da minha mãe, entendendo que onde estávamos, era muito melhor de onde eles estiveram. Minha mãe conta que junto a nove irmãos esperava ansiosa meu avô Zé Guedes chegar da pesca pra comer, meu pai mais de uma vez me dizia que era servido por minha vovó Jovem com um dedo de manteiga no prato para comer com o pão e cresci sendo testemunha e sendo uma discreta colaboradora prática das lutas dos meus pais e da minha mãe pela nossa sobrevivência. 

Eu vi bem de perto tudo que aconteceu nas nossas vidas através do esforço do meu pai que tinha como profissão ser segurança privado/vigilante e da minha mãe que antes de trabalhar com várias coisas, era a nossa principal cuidadora diária. Vi meu pai após pedir corajosamente demissão do Grupo João Santos por dizer não aguentar situações de humilhação - mesmo com dois filhos pequenos - vender nosso pequeno apartamento de cohab (ainda lembro da plaquinha de “vende-se” com o valor, R$ 3.000,00, o ano era 2000) no Curado IV, bairro situado em Jaboatão dos Guararapes/PE, eu tinha 08 anos.

Vi meu pai fazendo ainda no Curado serviços de limpeza de caixa d'água e dedetização, esta última chamava “LUX DEDETIZAÇÕES”, sociedade com seu amigo Lins, depois mudamos para Itamaracá, uma casa que antes de chegarmos lá para morar nesse novo momento das nossas vidas, vi a base ser levantada, assim como cada parede, a laje, vi portas e janelas serem colocadas, construída em um terreno dado pelo meu avô. Chegamos para morar na nossa casa feita com esforço da renda de meu pai como segurança, a casa não tinha reboco nem piso, era só o cimento, tinha o básico. 

Vi então meu pai alugar uma lanchonete e junto com minha mãe vender nela refeições e abrir à noite serviço de bar, ainda lembro dele fazendo uma plaquinha “ambiente familiar” e eu perguntar pra que era aquilo, não lembro a resposta, mas compreendi que aquilo queria dizer cuidado com a gente, dentro da lanchonete tinha um pequeno cômodo que servia de repouso para eu e meu irmão dormir enquanto eles trabalhavam à noite. 

Lembro também de uma barraca de batata frita que ficava em frente a humilde casa da minha avó materna, lembro de meu pai construir um bar na praia, de madeira, era uma espécie de bar móvel, era um cercado de madeiras com uma espécie de toldo e dentro ficava o isopor, as cadeiras de praia do bar foi ele também que fez. Então ele com um carro de mão carregava tudo isso para abrir o bar e no final do dia para fechá-lo e deixar tudo guardado na casa de vovó Lourinha.

Muita coisa né? Esse período de ralação autônoma foi difícil, afinal meu pai estava desempregado e lutando para a gente viver e continuar estudando em uma escola privada, tenho a imagem na minha cabeça de meu pai chegando com sacolas de supermercado dadas pelo meu tio e minha alegria de ver que tinha na feira biscoito recheado e também de almoçar com frequência macarrão, empanado de frango daqueles congelados e “kisuki” de morango. 

Através de ajuda da família em 2002 meu pai começou a trabalhar na “Guardiões”, empresa de segurança, passou anos lotado no Hospital da Restauração e nesse momento minha mãe que vendia bordado e fazia também curso de culinária começou a “passar bicho” no ponto do meu avô materno que tinha morrido e ficava em frente à casa de vovó, depois disso ela passou para um ponto melhor, com loja física na praça de Jaguaribe, que era conhecida também como a “praça das kombis”. Nesse momento, apesar ainda de muito trabalho como a vida toda, segundo a minha mãe é a partir daí que “o jogo vira” e nossa vida começa a melhorar.

Além de passar bicho, minha mãe começa a vender lanches e depois café da manhã e almoço, meu pai trabalhava lá nas folgas que era um dia sim e um dia não, com essa renda meus pais constroem nossa segunda casa, em cima da laje da primeira, eu já estou me preparando para o vestibular e meu irmão ingressa no antigo CEFET/PE para cursar o ensino médio junto com o técnico de mecânica industrial. Saímos da nossa casa para morar em uma de aluguel numa localização melhor, que ficou de moradia e para comercializar as refeições, lembro que minha tarefa era catar feijão e colocar eles de molho à noite para o dia seguinte e descascar a macaxeira e nos finais de semana ajudava lavando os pratos e meu irmão servindo as mesas (uma vez esqueci de descascar e mainha me acordou antes da hora da escola pra eu fazer isso de um jeito não tão delicado, inclusive nesse dia era meu aniversário, afinal trabalho é trabalho e eu só fazia isso).

Após esse período a gente começa a morar na casa de cima, a casa de baixo fica para aluguel, eles entregam o ponto que estavam negociando e meu pai segue trabalhando de vigilante, lembro também dele começar a fornecer lanches para o dono da lanchonete da integração de ônibus de Igarassu mesmo trabalhando como segurança e minha mãe começa a jornada de vender lanches de forma ambulante, ela começou andando, depois em uma bicicleta de carga e até hoje vende numa moto com uma espécie de bagageiro de alumínio.

Meu pai conquistou a aposentadoria em 2016 e comprou um ponto de comércio que terminou de pagar em 2020, lá ele fazia de depósito de bebidas e bar, ponto de encontro dos cachaceiros como ele dizia, vendia também tira-gosto que ele fazia muito bem. Até seu último dia de vida estava ativo, com a cabeça boa e se dedicando ao trabalho, coisa que ele fazia desde que era criança.

Eu e meu irmão crescemos testemunhando toda essa trajetória de muita luta, muitos sacrifícios e muita determinação através do trabalho honesto. Cresci entendendo que tudo era possível de se realizar mesmo com todas as dificuldades, mas você tem que batalhar muito para que os seus objetivos sejam alcançados, porque para quem é pobre sempre é mais difícil. “Meus privilégios” são claros, ter acesso a uma educação de qualidade fruto desse esforço que descrevo aqui e ter esses dois exemplos de lutadores dentro de casa servindo de inspiração para ser forte e persistente, sempre, não conseguir algo nunca foi uma opção.

Eu sei o valor de tudo que temos hoje, eu me lembro de absolutamente tudo, da nossa casa eu lembro de cada saco de cimento, milheiro de tijolo e metro de areia comprados para a construção. Lembro que ainda mais nova sonhei que uma onda gigante destruia nossa casa e eu só pensava “e agora? demorou tanto pra construir!” Quando passei na residência que meu pai soube o valor da bolsa que eu receberia mensalmente, ele me disse orgulhoso que tinha criado eu e meu irmão com a renda de um salário mínimo.

Me ver formada e com uma bolsa com mais que o dobro desse valor representou para ele a certeza da nossa vitória, hoje estou concursada, título de residente e de mestra, meu irmão engenheiro mecânico, essa é nossa herança, além claro das nossas duas casas e do ponto comercial que tem valor inestimável.

Recentemente compartilhei com meus pais a gratidão de mesmo em meio a uma grande crise social e econômica, o alívio de estarmos bem e confortáveis, ele então me escreveu: “Graças a Deus filha, essa condição confortável que estamos vivendo é  resultado, é fruto de toda uma disciplina de vida que soubemos conduzir. Quando  agregamos trabalho, família, fé, honestidade, solidariedade. Não tem como colher outra coisa e isso deve se manter como a motivação maior pra continuarmos na busca deste bem estar.” Essa é nossa trajetória de muita luta e sacrifício dos meus pais e vitórias nossas!



Comentários

  1. Amiga, não tem como não se emocionar com tanto testemunho lindo, riqueza de detalhes no seu jeito de escrever e sentimentos que captamos enquanto a gente lê. Você é o que é pq teve um exemplo lindo de superação e de bom caracter dentro de casa. Suas raizes se mantém, o que ele te deu em vida, não levou com ele quando partiu. Te amo e te admiro, amiga. Luana Carvalho

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  2. História nossas histórias... Dias de Luta Dias de Glória.

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