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Memórias da pandemia

Estamos vivendo como se a pandemia tivesse acabado. Tenho muito receio do relaxamento das medidas, desde que tudo começou as experiências dos outros países parece que não serviram de nada por aqui. Mas é inegável a sensação de alívio e felicidade em poder viver essa nova realidade, apesar da preocupação.

Um dia desses uma moça me entrevistou para uma pesquisa de doutorado, algo sobre a "representação da pandemia para profissionais de saúde". Foram minutos de algumas perguntas que me fizeram imergir completamente nas memórias mais dolorosas que carrego comigo dos primeiros meses desse período tão triste, os mais impactantes acredito que para todo mundo.

Eu não me recordo exatamente das perguntas, mas no final ela pediu para eu falar palavras que representavam se não me engano, algumas situações ligadas à pandemia, situações passadas, do presente e do futuro, lembro de responder "medo" e "dor". Dor não sei, mas medo tenho certeza que foi quase que geral. A definição da quarentena no início de março de 2020 foi chocante, como assim todo mundo precisar ficar dentro de casa sem sair? Sair na rua com medo de tocar em tudo, lavar sacola plástica, trocar de roupa ao chegar em casa. Claro, houve quem negou e até hoje nega, esses talvez não entendam o medo coletivo que sentimos, por isso insistem em negar.

Falei na entrevista da dor que senti, duas situações acabaram comigo, a primeira foi a perda do tio do meu então companheiro em meados de abril 2020, vi diante dos meus olhos em um espaço de tempo de pouquíssimos dias uma família ser completamente esfacelada, de repente Dudu não estava mais entre nós e no núcleo familiar dele tudo mudou em uma fração de segundos, a dor desse impacto eu não vou esquecer e pude compreender mais ou menos o que as milhares de famílias brasileiras estavam passando, acho que citei também durante a entrevista a palavra "empatia".

A segunda situação que me leva de volta ao lugar de dor e que minha memória parece tentar esquecer é que não sei como eu fiquei 03 infinitos meses longe da minha filha que tinha 03 aninhos apenas, o medo era tão grande que meu ofício de enfermeira me obrigou a entregar minha filha para os meus pais por tempo indeterminado, até que eu sentisse segurança pra encontrá-los novamente, e um, dois, três meses de passaram. Durante muitos dias chorei todas as noites antes de dormir. É um lugar que não quero voltar nunca mais. Um lugar que não desejo para ninguém. Eu não sei como eu consegui ficar tanto tempo longe dela, mas o incrível é que eu realmente não sei, não lembro, somente às vezes quando vejo uma foto daquele período é que vem a recordação desses tempos, mas espontaneamente eu absolutamente não resgato essas memórias.

Lembro de falar na entrevista também as palavras "responsabilidade" e "cuidado", é o que devemos ter todos os dias, respeitar as medidas sanitárias ainda vigentes e ter cuidados básicos com o aprendizado que a pandemia trouxe, tá com sintomas de gripe? Pode ser covid, se isola, faz teste, usa máscara.

Semanas depois dessa entrevista um colega enviou para um grupo do trabalho uma foto da noite de 31 de dezembro de 2020 no plantão, setor de pacientes com COVID. Na foto seguramos plaquinhas com os dizeres "feliz 2021, fique em casa, que venha a vacina". Registro valioso para reativar memórias de esperança, expectativa de que o ano de 2021 levasse todo medo e toda dor e fosse completamente diferente, embora os estudos apontassem que não, que a pandemia ainda não tinha prazo pra acabar, a gente acreditou, bom, foi um ano tão difícil quanto 2020, mas finalmente tivemos acesso às vacinas.

Foi muito difícil trabalhar tanto na atenção básica, como na assistência hospitalar durante esse período. Na USF vi de perto a situação das pessoas que já estava muito difícil, degradar ainda mais. O agravamento da desigualdade social, a pobreza e a necessidade de criar redes de solidariedade urgentes marcaram a realidade das comunidades periféricas já que o poder público foi omisso em o todas as esferas, no começo muitas pessoas ajudavam com doações, mas depois foi enfraquecendo, a crise chegou para todo mundo que não concentra renda, a carestia afetou a todos nós, a fome assolou muitos, quanta tristeza.

Na enfermarias vi o medo de meus colegas de trabalho da contaminação e o medo de morrer dos pacientes estampado na cara, o acometimento por uma síndrome respiratória aguda grave é realmente angustiante. Ao menos não presenciei muitos óbitos, apenas um. Tive o privilégio de trabalhar em um hospital universitário que salvou muitas vidas e tenho orgulho de poder ter contribuído com esse lado bom que temos para contar.

A vacina chegou. Profissionais de saúde são prioridade devido ao poder que esse público tem de ser vetor de transmissão, quando chegou a minha vez foi a maior emoção do mundo para mim. Era o começo do fim. Um fim ainda distante, mas o começo. Pude contribuir em pólo de vacinação e era mais emocionante ainda, ver famílias se abraçando após a vacina, ver nos olhos das pessoas a alegria de ter essa oportunidade, pude vacinar meu falecido e amado pai.

Passamos muita coisa durante esses mais de dois anos. A pandemia deixou milhares de órfãos, milhares de famílias devastadas, um prejuízo imensurável para a educação, revelou todas as mazelas do SUS e sua grande capacidade de cuidar da saúde das pessoas. Nós somos todos sobreviventes cheios de sequelas físicas, psicológicas e/ou emocionais, ninguém saiu completamente ileso. Mas estamos vivos e a vida, cara leitor(a), é para ser vivida. Que estejamos vivendo de fato o fim de todo esse pesadelo. 

Vamos comemorar!




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