Por esses dias precisei acompanhar uma pessoa da minha equipe da USF (Unidade de Saúde da Família) em uma unidade de pronto-atendimento, a tal da UPA, fazia tempo que eu não entrava em uma e a experiência foi caótica, mas também me fez refletir bastante sobre os serviços de saúde, sobre o sucateamento crônico que o Sistema Único de Saúde (SUS) vive e sobre a saúde das pessoas.
Dei entrada com ela com as seguintes queixas principais: pressão arterial 180x90 mmHg, glicemia 309 mg/dl, dor torácica, dois episódios de síncopes (desmaios), no caminho fui conversando com o motorista de aplicativo que fez nosso socorro já que não tinha ambulância do SAMU disponível, 15 ocorrências já estavam na nossa frente, e fui dizendo para ele sobre a impotência de estar diante daquela situação e não ter as condições de fazer absolutamente nada, a conduta básica seria administrar insulina para corrigir a glicemia e um captopril 25mg para tentar estabilizar a pressão arterial e na nossa unidade não tinha nenhum dos dois insumos, NENHUM DOS DOIS e não é frequente este tipo de atendimento mas devemos estar aptos para receber e resolver, mas não tinha, não tem, estamos inclusive sem insumos básicos para atendimentos de rotina como renovação de curativos.
Chegamos na triagem médica e fui obrigada a ouvir a seguinte fala do colega que nos atendia após meu relato de não ter as condições de ter feito nada por ela, "posto tinha que acabar, não serve pra nada, tudo que estamos recebendo aqui são problemas que deveriam ser resolvidos no posto". Respirei fundo e não falei muita coisa, deixei de lado o debate.
Se ele tivesse feito só a segunda fala, eu poderia prosseguir com reflexões, argumentações sobre a realidade coletiva que o SUS vive, mas a primeira fala "posto tem que acabar" me fez entender que não adiantaria falar qualquer coisa que fosse, quem reproduz essa fala não tem capacidade de compreensão nenhuma sobre o papel da atenção básica ou possivelmente não teve a formação necessária para essa compreensão que não é empírica, é científica, é comprovada com estudos, é uma compreensão simplesmente básica como a atenção à saúde deve ser.
A UPA estava lotada, todas estão, lotadas com público de todas as faixas etárias e recebem casos das mais variadas ordens e complexidades, a demanda é gigante para a capacidade de absorção dos serviços. É um cenário realmente caótico e desesperador. E como disse o colega médico da triagem, muitos desses problemas deveriam ser resolvidos lá na atenção básica e não apenas na perspectiva que ele trouxe, do primeiro atendimento, mas na perspectiva de médio e longo prazo, na perspectiva da promoção da saúde.
Os problemas de saúde das pessoas tem a ver com as determinações sociais de saúde que as mesmas estão condicionadas, hábitos de vida como o sedentarismo, fumo, uso de álcool, nível de escolaridade, herança genética, situação de pobreza e a partir disso condições de alimentação, moradia, lazer, acesso à informação e aos próprios serviços de saúde, todos esses fatores vão contribuir para uma determinada situação de saúde de uma pessoa ou de uma população. E falta muito para que a maioria das pessoas e populações tenham a compreensão e principalmente as condições de produzirem um nível de saúde, individual e coletivo, que garantam qualidade de vida e melhora dos indicadores de saúde das causas de morbi-mortalidade atuais que causam além de sofrimento para as pessoas, custos elevados para os serviços de saúde (medicamentos, exames, internamentos).
É verdade que são problemas de saúde e doença complexos, mas a saída é pela via básica, está no básico, na garantia dos direitos fundamentais básicos dos acessos. Acesso à educação, alimentação de qualidade, lazer, moradia digna, prática de esportes, infomação, serviços de saúde de qualidade. A saúde é intersetorial, é uma responsabilidade dos mais diversos segmentos da sociedade.
Mas o que cabe à Atenção Básica no SUS?
A Atenção Básica através da Estratégia Saúde da Família é a principal porta de entrada do SUS, é o primeiro lugar que as pessoas procuram e devem procurar ao passar por um problema de saúde, porque territorialmente é o serviço de saúde mais próximo de sua residência, ela também ordena o cuidado aos outros níveis de atenção, diz para onde as pessoas devem ir e o que elas tem que fazer.
Além disso e principalmente, o famoso "postinho" não pode ser visto nem pelos profissionais, nem pelos usuários e nem pela própria rede de saúde como um pequeno ambulatório para tratar problemas mais agudos das pessoas de forma pontual. É preciso ter compreensão dos atributos da Atenção Básica ou Atenção Primária à Saúde e o papel que ela deve cumprir no processo de promoção da saúde das pessoas e das populações.
É no postinho, no PSF, na USF, que considerando o diagnóstico de saúde dos respectivos territórios, as equipes compostas basicamente por pelo menos Agentes Comunitários de Saúde, Enfermeiro (a) e Técnico (a) de Enfermagem, Médico (a), devem se debruçar para planejar como ofertar serviços e ações de saúde de forma programada para a população vinculada a sua equipe. No geral, são programações básicas dos problemas mais frequentes dos territórios: hipertensão, diabetes, tuberculose, hanseníase, esquistossomose, IST's, assistência pré-natal e de puericultura, atenção à saúde ginecológica, vacinação.
E a partir das demandas elencadas planejar também como se dará o processo de trabalho do conjunto dos profissionais e pensar como garantir assistência para tal. É papel então da Atenção Básica promover para o grupo de hipertensos e diabéticos o incentivo do combate ao sedentarismo e da alimentação saudável, das práticas não medicamentosas para o controle das doenças e assim evitar todas as complicações que essas doenças crônicas podem trazer, não é um processo simples de acompanhamento mas é básico.
E é básico, mas envolve muitos fatores para que funcione, o fator cultural é de grande interferência para o fracasso da promoção da saúde na Atenção Básica. Hegemônicamente temos uma concepção de que a saúde é apenas a ausência de doenças e de que uma vez doentes o profissional que devemos reportar nossa situação de saúde-doença é apenas o profissional médico e como já citei anteriormente a saúde vem da garantia de vários acessos e uma vez doentes o cuidado deve ser multiprofissional e interdisciplinar.
Outros fatores determinantes para fracasso ou sucesso da promoção da saúde e sua resolutividade está no perfil profissional de quem está na Atenção Básica, o processo formativo em que estiveram inseridos para chegar ali ou a oferta de educação permanente que construa o perfil necessário para esse trabalho é realmente fundamental, e por último e o mais gritante e importante, as condições e os recursos. A garantia de tamanho da população por equipe de acordo com o que é preconizado pela Política Nacional de Atenção Básica, a valorização dos trabalhadores e trabalhadoras, a criação de protocolos que orientem os processos de trabalhos e à assistência à saúde, os insumos, os acessos aos especialistas quando necessário, a assistência farmacêutica, o acesso a exames laboratoriais e de imagem, realmente o básico para o pleno funcionamento da Atenção Básica.
O sucateamento e desfinanciamento crônico que testemunhamos na Atenção Básica são propositais, servem para reforçar falas como ouvi na UPA "o posto não serve pra nada", e é preciso olhar para essas falas e reconhecer que realmente a Atenção Básica vem deixando de cumprir seu papel proposto, mas ao mesmo tempo articular condições através de micro-rupturas de resistência que injete ânimo nos profissionais e que garanta minimamente condições de realizar o trabalho que deve ser feito até conseguirmos acumular forças e maiores condições de fortalecer a luta por um financiamento digno não só para a Atenção Básica, mas para todo o nosso SUS.
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