Vi meu pai e ainda vejo minha mãe fazendo trabalho braçal pra pagar as contas. Muitos trabalhos, meu pai serviços de dedetização, sendo dono de bar, vigilante, minha mãe bordando, revendendo avon, fazendo lanches, ofício que cumpre até os dias atuais. Me pego pensando nisso dentro da sala que trabalho com o ar-condicionado em 16 graus, onde passo as manhãs e as tardes realizando consultas de enfermagem na maior parte do tempo sentada fazendo avaliações, orientações, escutas. Refleti sobre esses trabalhos também uma vez quando entrei no elevador do plantão e comentei com a moça dos serviços gerais que eu tava sentindo frio, ela rebateu que "tava era com muito calor". Penso nisso o tempo todo, como um dia desses que vi um homem de manhã carregando sozinho no ônibus duas caixas de morango pra vender ou quando o marido de uma gestante que atendo não consegue se livrar de uma lesão que deve ser causada por fungos que com certeza veio do trabalho dele na Ceasa. Trabalho é trabalho é lá onde produzimos ou realizamos atividades necessárias para o desenvolvimento da nossa sociedade, mas existem trabalhos e trabalhos e existem pessoas e pessoas que ocupam esses trabalhos. Ontem lendo um artigo em que falava sobre "uma massa não branca, vinculada ao trabalho manual precário, demandante e marginal" pensei em como é incrível ou talvez a melhor palavra seja "estarrecedor", como a maioria das pessoas não enxerga a nossa construção social com essa lente. A lente do racismo que estrutura nossa sociedade e que determinou que a população negra não era digna de direitos básicos (além do direito de ser gente) no período da escravidão e que convivemos com essa realidade até hoje. Meu pai era preto, minha mãe é branca e eu sou uma mistura das cores deles e minha ascensão social particular (estudar em universidade pública, ter mestrado e hoje ser servidora pública) se deu devido às condições que eles me deram através do acesso a uma educação de qualidade. É como falam por aí "é sobre isso". Quando historicamente negamos direitos básicos como moradia digna, alimentação e educação, vamos excluindo parcelas de ingressar na universidade, de ter uma profissão, de ter QUALIDADE DE VIDA. Essas parcelas tem cor, na maioria são pessoas negras, herança dos anos de escravidão. É o racismo estrutural que a gente tanto denuncia, sabe? Mas sempre que vejo pessoas realizando "trabalhos manuais precários, demandantes e marginais", pretas, pardas ou brancas, eu fico pensando: já que assim está e que assim é, pelo menos essas pessoas poderiam ter seus trabalhos valorizados em remuneração, em suas condições de trabalhar e ter uma qualidade de vida melhor, sabe? Comer bem, ter acesso a bons serviços de saúde, moradia digna, lazer, estudos, era só isso.
Vivo hoje o 7° dia da partida do meu pai dessa vida, perdi a pessoa que mais amava nesse mundo (até minha filha chegar). Foi como se tivessem arrancado um pedaço do meu corpo, dói tanto, morrer dói nos outros. Não importa as circunstâncias, o tempo, a forma, ninguém quer perder quem ama. E ainda que ele vivesse dizendo "eu já posso morrer" se referindo a nossa condição material: ele aposentado, deixaria a pensão pra minha mãe, eu enfermeira concursada, meu irmão engenheiro, uma neta que ele sempre me pediu, ele não podia morrer. Eu não queria perdê-lo por nada nesse mundo. Na segunda passada, 16 de agosto de 2021 perto das 19h recebo a ligação da minha mãe aos prantos, "beta, acho que teu pai tá morrendo" e eu morri um pouquinho ali também, nunca uma viagem pra Itamaracá foi tão longa, fiz promessas pra Deus e pra Nossa Senhora da Conceição. Mas não tinha mais promessa que desse jeito, meu pai tinha morrido. Partiu de forma relativamente breve, com alguma angústia
Ótimo texto!
ResponderExcluirDignidade pros povos
ResponderExcluirParabéns querida Melka, excelente texto, cheio de força, essência e legado. Compartilho do mesmo ponto de vista e trajetória. Forte abraço. Deus te abençoe. Um xero💐👏
ResponderExcluirDébora Barros Fensguiana tbm lhe conheci como Melka do DA kkk
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