Me recordo de todos os ataques quando foi criado o programa "Mais Médicos", acéfalos diziam que estávamos deixando de investir em médicos brasileiros pra dar dinheiro ao sistema socialista de Cuba e outros absurdos, esse discurso poderia até convencer quem não conhece a realidade da relação médicos x PSF, mas não a mim. É certo que as condições de trabalho em muitas unidades de saúde da família são bastante precárias, mas é verdade também que não é interessante pra muitos médicos serem da atenção básica, porque é muito tempo dedicado em um serviço só e tempo é dinheiro.
Tempos depois passei na prova de residência em Saúde da Família e assim que soube as unidades onde estaríamos alocados, soube que em uma delas a médica era cubana, me empolguei e quis ser desde já dessa unidade, a outra colega não fez questão de ficar lá e assim foi, fiquei vibrante com a ideia de estar perto de uma médica do programa, uma médica cubana, pensei que teria oportunidades de aprender e aprendi, mas não aprendi sobre práticas e técnicas, Sarait me ensinou valores, me mostrou o que uma sociedade socialista é capaz de formar para além da profissão e aqui compartilho um pouco com vocês.
Nossa principal referência de médicos brasileiros são aqueles homens com ar de superioridade, donos da verdade e que tem poder. No Casarão do Cordeiro, unidade de saúde que trabalho, a gente almoça na copa e almoça qualquer coisa, cuscuz com calabreza, macarrão com sardinha, enfim, qualquer coisa, a primeira coisa que reparei foi que Sarait almoçava conosco e que a pessoa que ela mais tinha afinidade trabalha com serviços gerais e ia até pra casa dela almoçar de vez em quando, como assim uma médica na copa misturada com todo mundo e comendo qualquer coisa?
Como quando comecei minhas atividades a enfermeira preceptora estava de férias, pude então dividir algumas consultas com ela e a admirei pela forma atenciosa com que atendia as pessoas, a gente vê a diferença pelo tratamento. Lembro que na primeira vez que estive com ela, ela receitou fazer um chá com folha de goiaba e colocar ele em cima das lesões da usuária pra "secar" mais rápido, foi quando me atentei pra esse negócio de práticas integrativas e complementares que na nossa medicina tradicional a gente quase não usa. Mas como já disse não foram práticas nem técnicas que me despertaram a atenção, foi o país cubano e a formação dos seus cidadãos.
Teve uma vez que a caneta dela começou a falhar, ela pegou o caninho da tinta e começou a passar o isqueiro pra caneta voltar a pegar, aí ela olhou pra mim me perguntando se eu nunca tinha feito, disse que não, foi quando ela falou "é que aqui vocês tão acostumados a jogar tudo logo fora, no meu país não tem isso, a gente tem que se virar com o que tem". E fui conhecendo a simplicidade dela. Cuba é um país que sofreu há muitos anos um bloqueio econômico dos EUA, eles tem uma economia limitada em relação a tudo, então não tem muitas variedades no mercado, nada de muita tecnologia, lá por exemplo não tem sonar, aquele aparelho que ouve o coração do bebê no pré-natal, Sara comentou uma vez que levaria um daqui pra que as grávidas pudessem ter essa oportunidade.
E foi nessas conversas sobre coisas materiais que ela disse que nada adiantava ter um país rico como o Brasil se tudo era tão desigual, se alguns tinham tanto e outros não tinham quase nada, porque no país dela era diferente, as pessoas tinham acesso igualitário as coisas e fui vendo o que representava a conquista de uma sociedade socialista mesmo com todas as dificuldades impostas à Cuba: os valores, a consciência. Ela me questionava o que era riqueza e eu que sou socialista concordava feliz com o que ela me dizia. Ela ficou surpresa também quando falei que um vereador em Recife tinha um salário de R$ 15.000,00 e lá não recebe nada pra isso, falou com emoção de Fidel e do que ele representava pra o povo, sem dúvidas Cuba é um lugar que preciso conhecer.
Sou muito grata e feliz de ter conhecido Sarait, sou muito grata a ela pela contribuição dada ao meu país e a todos os profissionais do programa Mais Médicos, a gente tem um sistema de saúde falho, que falta muita coisa, mas o mais importante é a gente ter gente que queira cuidar de gente e isso tenho certeza que eles fizeram, li uma matéria que chegarão novos, mas tenho muitas dúvidas, no contexto político de golpe que a gente vive acho que é mais fácil voltar a deixar o povo sem médico, mas vamos aguardar pra ver, eles superaram todas as dificuldades de uma cultura diferente, do preconceito e da saudade de casa, foram três anos de militância, agora voltem pra casa com sentimento de missão cumprida!
Sara, qualquer dia chego em Cuba com Loreta, hasta luego, minha doutora!
Viva à Fidel! Viva à revolução cubana! Viva à medicina cubana!
Me emocionei...conheço alguns médicos e médicas brasileiros que tiveram a oportunidade de se formar em Cuba e percebo como são diferentes...por isso criaram a Rede de Medicas e Médicos Populares...os admiro muito!
ResponderExcluirBelo texto, Melka. Muito triste, o final do programa....Demoramos a fazer essa parceria! Era para existir desde 2003 e estar mais consolidada, mas....Já gerou um impacto importante: nosso povo agora sabe que o cuidado médico pode ser humanizado! Vamos em frente, lutar pelo SUS!
ResponderExcluirBelo texto Melka. Minha convivencia com xs amigxs cubanxs tambem elevam minha alma.
ResponderExcluirMuito interessante o texto. Me emocionei. Aqui em Paulista fiz parte da equipe que recebeu 17 médicos em 2013/2014. Conheço de perto a forma de convivência desses profissionais. Pessoas humanitárias com dedicação ao trabalho. Um município que recebeu grande número de profissionais vai ser difícil conviver com essa ausência até que substituições aconteça.
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